Este é um espaço de compartilhamento de idéias e textos do processo de pesquisa em andamento por Fernando Machado e a StacaTToSPciaDança. O projeto é apoiado pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade de SP, por meio do programa de Fomento á Dança 6ª Edição.



terça-feira, 20 de outubro de 2009

artigo escrito pelo Rodrigo Vilalba ...


Filosofia para melhor dançar

Rodrigo Vilalba Caniza

"A dança torna visível o invisível". (Paul Klee)

Pode uma prática como a filosofia, que apresenta “resultados” muitas vezes tão sutis e difíceis de avaliar por critérios pragmáticos ou utilitaristas, garantir alguma coisa à arte, área de experiência que, segundo críticos como Clemente Greenberg, encontra-se entre aquelas atividades mais pragmaticamente orientadas, ou seja, interessadas apenas nos resultados (os juízos de valor, no caso)?

Os bailarinos que formam o elenco da companhia de dança Stacatto e seu diretor artístico, Fernando Machado, parecem acreditar que sim. Por isso me convidaram a participar de encontros realizados todas as quintas-feiras, com a intenção de discutir formas de incluir o repertório filosófico no universo da dança. Nos encontros, procuramos desenvolver uma metodologia de investigação que use princípios da filosofia como “guias” ou “marcadores” para o processo criativo.

De maneira geral, o método filosófico de investigação proposto sugere uma reflexão contínua e organizada sobre temas fundamentais relacionados ao processo de criação artística.

A primeira etapa do método implicou na percepção consciente do pensamento (fluxo contínuo de idéias) e dos padrões mentais que se instalam ao longo dos anos, como conseqüência da educação recebida e da organização dos valores herdados. Nesse momento, os bailarinos da companhia foram convidados a prestar atenção aos próprios pensamentos e perceber como muitas de suas reações racionais, inclusive suas avaliações sobre a dança e a arte, eram baseadas em definições imprecisas e conceitos vagos.

A segunda etapa do método procurou demonstrar que um dos padrões mentais mais freqüentes e básicos é aquele que nos faz gerar conceitos e definições a partir de oposições. Uma vez que esse padrão gerador de oposições foi conscientemente percebido, pôde ser usado como instrumento para compreensão e interpretação eficiente, como se fosse uma espécie de lente que acentua o contraste e permite perceber com mais clareza as divisões e relações entre as partes que constituem uma criação humana qualquer.  

A terceira etapa do método foi realizada com o auxílio de um exemplo, uma produção artística que será interpretada a partir das oposições conceituais dentro das quais suas várias partes de enquadram. O exemplo fornecido é a obra “O Aleph”, do escritor Jorge Luis Borges, considerada ideal para os propósitos criativos dos encontros por comportar doses semelhantes de verossimilhança e fantasias. Nessa etapa, o elenco da Stacatto foi convidado a criar listas de oposições que pudessem ser encontradas entre palavras e conceitos presentes nos contos de Borges.

A quarta etapa do método convidou os participantes a questionar publicamente a qualidade, as intenções e o contexto da obra trabalhada como exemplo. O questionamento aberto, sem limitações provocadas pelo medo da reprovação, esclarece para o próprio questionador e para seus interlocutores as medidas de seu conhecimento e de seu envolvimento com o tema proposto. Nesse momento, os participantes formularam perguntas sobre as obras de Borges e passaram a dirigir esses questionamentos para os colegas de modo sistemático. Qualquer pergunta sobre a obra e sua capacidade de sensibilizar o leitor poderia ser feita e qualquer um poderia responder, inclusive sugerindo possíveis motivações do autor e dos personagens. 

Assim, a partir da aplicação da quarta etapa do método o participante tinha a possibilidade de, ao avaliar a obra, avaliar-se com relação à obra. Esse processo de avaliar a si ao avaliar-se com relação ao outro é uma condição essencial para o cumprimento da quinta e última etapa do método, a criação de um discurso que incorpora elementos do outro para obter uma qualidade que, sem a incorporação, não existiria.

O resultado final da aplicação do método é a aquisição da consciência de alteridade, numa acepção próxima a de Emmanuel Lévinas, para quem o sentido mais profundo e verdadeiro do humano e das práticas humanas só pode ser encontrado na sua relação com o outro.  

Na verdade, a filosofia não é estranha à dança e ao bailarino, uma vez que participa da formação interdisciplinar dentro da qual os estudos sobre as Artes se encontram. Tampouco a dança, como manifestação do belo, do poético e da arte, não é estranha à filosofia. Existem, inclusive, iniciativas semelhantes à praticada pela companhia Stacatto, como, por exemplo, o projeto de extensão universitária paranaense DAN-SOFIA, criado em 2002 e tornado público em 2003.  

Vejamos, a seguir, algumas outras aproximações entre as artes, a dança e a filosofia.

Na Antiguidade

Não entendem que o diferente condiz consigo mesmo: harmonia discordante como a do arco e da lira.

É Heráclito de Éfeso (540 – 480 a. C.) quem inaugura a polêmica sobre a importância que se atribui às criações poéticas (“artísticas”), quando denuncia o mau uso que os leitores de sua época fazem da poesia homérica, esperando dela a descrição de uma verdade histórica. Ainda assim, o mesmo Heráclito faz questão de registra sua admiração ao próprio poeta Homero e à capacidade geral da poesia de dissolver as oposições lógicas da sintaxe regular e aproximar “o arco e a lira”, dois símbolos apolíneos.

Para se avançar no comentário sobre a relação entre as artes e a filosofia é necessário, antes, lembrar que a palavra “arte” originalmente identifica qualquer área de produção humana na qual seja necessário aplicar algum conhecimento específico. Assim, a princípio, seria tão correto falar sobre uma “arte de fazer sapatos” ou “arte de limpar vidros” quanto falar sobre a “arte de fazer música” ou a “arte de dançar”. Do mesmo modo, é importante também considerar que na poética dos muitos filósofos seguidores da tradição platônica, dissociavam-se as práticas artísticas e o belo.

Para Platão, o belo é a própria manifestação da idéia enquanto a arte é considerada imitação e se limita ao território do sensível, a “não-idéia”. Platão limitava à condição do equívoco todo fazer corporal orientado pelos instintos, como as danças báquicas, e negava a certos tipos de dança o valor artístico, preferindo destacar modalidades de dança que tivessem caráter disciplinador, como modelos para aquisição da “virtude”, a excelência física e intelectual que garantia o poder da polis grega.

Aristóteles acreditava que o belo está na manifestação da idéia de ordem, mas já atribuiu ao drama e à música a capacidade de provocar “catarse”, uma sensação de libertação e serenidade. Começa aí outra tradição filosófica que vai, aos poucos, valorizando positivamente as artes e aproximando determinados fazeres artísticos e o conceito de belo.

 

A arte e o belo

Para a filosofia, o belo tem pelo menos quatro significados possíveis.

Existe a definição platônica do belo como manifestação do Bem, capaz de recordar ao ser humano a perfeição das idéias. Há a definição aristotélica do belo como manifestação da ordem e da simetria. Há a definição romântica do belo como manifestação da verdade e há também a definição da Estética, segundo a qual “beleza” é a qualidade da obra que atingiu a perfeição sensível.

A partir dessa quarta definição de belo como perfeição sensível provavelmente amadurecem todas as demais considerações convencionais que até hoje são encontradas em avaliações sobre as qualidades necessárias à “obra de arte” ou à “obra-prima”, como a capacidade de provocar prazer sensível e agradar de modo universal, sem depender da razão para tanto.

O interessante é perceber que, na filosofia contemporânea, todos ou quase todos os aspectos que, durante muito tempo, definiram a arte como uma manifestação inferior (a plástica sedutora, a polissemia, o desapego da razão e das idealizações) passam agora à condição de forças essenciais para a preservação da atualidade e da coerência do próprio discurso filosófico.

 

A arte e a filosofia contemporânea

Para muitos filósofos atuais, a arte interessa justamente porque carrega a possibilidade de integrar (ou desconstruir e até mesmo destruir) oposições conceituais, ou de demonstrar as limitações do pensamento que se baseia nessas oposições, como um julgamento que considera apenas as noções de certo e errado. É o caso, por exemplo, de Jacques Derrida, para quem o discurso lógico, baseado em oposições, carrega em si uma limitação que o impede de reconhecer qualquer aproximação da consciência em direção à verdade do conhecido.

Em sentido aproximado, a arte interessa à filosofia contemporânea de Gilles Deleuze, entre outros motivos, porque possui uma força de desterritorialização que pode interromper fluxos de normas e evidenciar a própria vida, a “diferença”.

Finalmente, em Gaston Bachelard, a filosofia contemporânea se aproxima da arte com a finalidade de compreender a ontologia da imaginação criadora e sua força como portadora do “novo”, qualidade possível na arte, capaz de atualizar arquétipos comuns a todos e criar um tipo de transubjetiviade desejável entre artista e público.

Se as contribuições dos filósofos citados acima forem consideradas, talvez seja possível construir um quadro no qual se verifiquem, além das contribuições da arte para a filosofia, os recursos que a filosofia tem a oferecer para o artista.

Esses recursos incluiriam uma metodologia de indagações e investigações sistemáticas, baseadas na lógica, mas, também, na intuição e no livre questionamento, além de uma abordagem esclarecedora, que integra a arte ao conjunto de ações fundamentais para a aproximação do outro, para o desenvolvimento da imaginação criativa, para a construção do novo.

A filosofia também é capaz de alertar para os perigos de se alinhar o fazer artístico a uma ideologia meramente purista, que nega qualquer envolvimento com a história e as agendas políticas e sociais; num sentido oposto, denuncia as limitações da “arte engajada” ou de uma interpretação engajada da arte, que a toma como produto aparentemente capaz de iluminar o mundo com pretensas “verdades” sobre a condição humana.  

 

A dança e a filosofia contemporânea

Trabalhos como o de David Michael Levin e Frank Ries demonstram que a dança é comentada em textos de filósofos essenciais, como Platão, Schopenhauer, Kant, Nietzsche, Heidegger e Hegel, ao longo de toda a história, mas não há, no projeto desses pensadores, nenhuma indicação de uma “filosofia da dança”.

As considerações filosóficas sobre a arte passam a focalizar a dança com mais freqüência, variedade e profundidade apenas nas últimas décadas. Nesse sentido, é possível citar a abordagem fenomenológica de Maxine Sheets-Johnstone, o viés existencialista de Sandra Horton Fraleigh e a análise pós-moderna de Susan Foster, além de trabalhos de autores como o polêmico Roger Garaudy, Nelson Goodman, Joseph Margolis, Stephen Pepper, Curtis Carter e Francis Sparshott.

Sparshott, por exemplo, procura aplicar um sistema lógico na análise das várias definições possíveis para “dança” e na avaliação que faz da crítica de dança.

Existem, ainda, bailarinos cujas pesquisas e reflexões alcançam um nível de profundidade que se assemelha, quando não supera, as iniciativas intelectuais de muitos filósofos. Esse é o caso, por exemplo, de Rudolf Laban e suas abras, que resultam num interesse teórico geral pelo corpo e pelo movimento do corpo.

O estudo do corpo e de suas relações com a arte, a cultura e a formação de identidades sociais sempre esteve presente na história da filosofia, mas ganhou importantes contribuições, ao longo dos anos, graças ao trabalho realizado por pessoas de áreas distintas, como a Semiótica, a Antropologia e a Psicologia.

Dançar com a mente, filosofar com o corpo

Nos encontros filosóficos da Stacatto, a parceria entre dança e filosofia parece, afinal de contas, um bom negócio para as partes envolvidas. A filosofia alcança a dança e (re)descobre nela todo um conjunto de questões contemporâneas e fundamentais, como as dimensões de realização do corpo e os limites e as possibilidades de encantamento que ainda restam à arte. A dança, por sua vez, serve-se da bem-vinda incerteza de resultados do projeto filosófico para renovar sua busca pelo sentido que fundamentará criações futuras.

No sábado, dia 03 de outubro, dentro da semana de apresentações “3ª. Mostra do Fomento à Dança”, a companhia Stacatto teve seu primeiro contato com o público para discutir os resultados dos encontros de quinta-feira. A conversa, intitulada “Idéias & Movimento”, começou com a questão “Em que momento a intenção de dançar transforma-se em dança?”

Fernando Machado acompanhou quase todo o encontro em silêncio e presenciou a participação interessada de bailarinos, convidados e visitantes das mais variadas formações. No final, disse “Hoje dançamos muito!”

Indagado sobre o sentido de sua frase, afirmou a seu modo que, para acontecer, nossa conversa filosófica exigiu altas doses de improviso, atenção e treinamento, como a apresentação de um espetáculo. Filosofia como dança? Aguardamos todos ansiosos um projeto de investigação que possa defender a pertinência dessa comparação. Quem sabe num próximo artigo...

Pisamos terreno desconhecido, perigoso até, mas nos movemos com dedicação. Onde começa a dança e termina a pausa? Sabemos que a filosofia e a dança não se interessam apenas pela dança e pela filosofia. Tampouco se interessam apenas por si próprias. O foco está no mundo, no humano.  Enquanto aí estiver, serão nossas as maiores esperanças de assombro e de encontro.

Complemento – por que Jorge Luis Borges? Pequeno manifesto

A obra do escritor argentino Jorge Luís Borges (1899 – 1986) é um espelho de encantamento. Você sai do mundo, entra no espelho e volta para o mundo, devolvido pelo espelho, reencantado. O Aleph, dentro da história, é esse espelho dentro do espelho.

O encantamento é o combustível da criação artística e a filosofia é a ferramenta que mantém vivo o encantamento uma vez desperto por meio da indagação contínua, sem a qual não se procuraria o próprio encantamento.

Nossa questão não é saber se Borges pode ser dançado.

Nossa questão é saber o que, em Borges, reflete o mundo e o que, nesse reflexo do mundo, pode ser inspirador para a dança.

O que descobrimos é que, no Aleph e no Labirinto de Borges, estamos todos contidos e, portanto, o reflexo do mundo inspirador para a dança é o eu e o outro, suas oposições e suas alteridades.

Tudo isso descobrimos lendo Borges: encontramos encantamento no que somos e descobrimos que somos parte do mundo, o outro está contido em nós, mas, ainda assim, há algo próprio nosso, uma essência, que parece não ser de ninguém. Como afirmou, certa vez, o próprio:

Sob a lua
a sombra que se alonga
é uma só.

 

Bibliografia

BACHELARD, G. A poética do espaço. In: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1978

DELEUZE, G.& GUATTARI, F. O anti-Édipo — capitalismo e esquizofrenia. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996

MACHADO, R.  Deleuze – Arte e Filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009

SCHÜLER, D. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre, L&PM, 2000

WOLFREYS, J. & SOUZA, C. Compreender Derrida. Petrópolis, Vozes, 2009 

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